Mestre Mano é conhecido por ter, entre outras preocupações, a de manter a Capoeira Angola o mais próxima possível das suas raízes. Tem sido assim desde que começou a treinar com Mestre Moraes, 32 anos atrás. Mestre Mano transformou-se, assim, numa pessoa muito querida por seus alunos e por quem está preocupado em extrair o máximo da Capoeira Angola apoiando-se no binômio riqueza-simplicidade. Sua aparente rigidez abriga um educador preparado para exaustivas argumentações em favor da arte que abraçou. Um homem capaz de dar vida a um movimento que só os verdadeiramente grandes exercitam: tratar seus discípulos com grande deferência. Em entrevista ao jornal “Folha de Angola”, ele falou entre outras coisas sobre as transformações sofridas pela Capoeira Angola ao longo dos últimos 30 anos.
Folha de Angola: Existe uma diferença básica entre a Capoeira Angola dos anos 70 e a de hoje?
Mestre Mano: Existe uma diferença profunda. Na década de 70, quando começamos com a Capoeira Angola no Rio de Janeiro, o cenário era dominado pelo grupo Senzala, de Capoeira Regional. Quando Mestre Moraes chegou aqui, em 1970, tinha que, além de trabalhar a Capoeira do jeito dele, adequar tudo à situação vigente. Os praticantes da Capoeira Regional eram verdadeiros armários, fortes. Queriam bater, não tinham um critério de jogo. Naquela época, a gente não podia apenas fazer a movimentação. Além da beleza que é peculiar da Capoeira Angola, precisávamos de eficiência. Era um terreno muito hostil.
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F.A.: A Capoeira Angola provou sua eficiência?
M.M.: Sim. Há situações em que você consegue ser muito plástico, lúdico. Mas tem outras em que não pode ser só isso. Hoje, vejo que tem muita gente fazendo acrobacias.
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F.A.: As pessoas tendem a valorizar demais este lado plástico, bonito?
M.M.: Sim, porque ficam jogando só entre angoleiros. Acho que precisamos trabalhar o lado marcial também. Não para bater nos outros. As pessoas estão se travestindo de angoleiros sem ter a noção do que é a essência do angoleiro. Hoje, as pessoas se importam pouco com a eficiência da Capoeira. Não é que eu seja brigão. Na década de 70, o terreno era árido. Hoje, não é tanto e isso é ruim para a Capoeira. Pela beleza da Capoeira Angola, pelos princípios das perguntas e da respostas, acham que os movimentos devem ser feitos só pela beleza. Tem que ter beleza, lógico, mas precisamos de eficiência também. E técnica. Capoeira sem técnica não dá.
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F.A.: Técnica, precisão, entender perguntas e responder adequadamente... Isso se perdeu?
M.M.: Está se perdendo. O sujeito dá um rabo-de-arraia devagar e você vê o outro saindo por baixo, em direção ao golpe. Isso não existe! E hoje, um monte de gente faz isso. Estão exagerando no exercício de flexibilização.
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F.A.: Não se trata da capacidade do angoleiro de se adequar, de achar brechas?
M.M.: Você não pode achar uma brecha nadando contra a corrente. Se o princípio diz que você deve sempre sair no mesmo sentido do golpe, nunca de encontro a ele... Você pode virar fumaça e escapar, mas tecnicamente está errado. A continuidade, aliada ao ritmo, é muito importante.
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F.A.: É um sinal dos tempos?
M.M.: Concordo: está tudo muito veloz, hoje; muitas informações passadas ao mesmo tempo. Mas a idéia do CCARJ (Centro de Capoeira Angola do Rio de Janeiro) é manter tudo da forma o mais original possível. Acredito no seguinte: os golpes não podem ser modificados. Não podemos transformar uma adaptação num movimento definitivo. Um exemplo é aquela chapa de frente, que as pessoas soltam com as mãos apoiadas no chão. O que existe é a chapa no rolê, na qual você empurra o adversário. Na posição de rolê! E colocar as mãos no chão e ficar tentando arrastar alguém... isso não existe.
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F.A.: O Capoeira que só joga com o que existe originalmente não leva uma desvantagem?
M.M.: Temos dez números, de zero a nove. Com estes, fazemos infinitas combinações. Se a gente tem dez movimentos... Com estes, podemos fazer infinitas combinações. Se você trabalha com poucos movimentos mas eles são bem feitos, supera quem faz mais coisas mas de maneira errada. Normalmente, estes movimentos que estão sendo introduzidos não têm força. Isso não apenas dificulta o foco como dá margem para que pessoas comecem a ensinar da maneira que acharem melhor. “Ih, aqui a Capoeira tem muito mais movimento...” Para um leigo, isso pode ser bom. Mas não faz sentido.
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F.A.: A internacionalização da Capoeira aumenta o risco de descaracterização?
M.M.: Não tenha dúvida! Às vezes, as pessoas saem daqui e encontram um solo tão fértil. Sai daqui aluno, chega lá mestre. A qualidade da Capoeira Regional lá, ela que foi a primeira a ser exportada, é duvidosa. Se os mestres angoleiros mantiverem as tradições, diminui o risco de descaracterização. A gente tem que buscar a base. Discutir ginga, rolê, negativa. Capoeira não se joga no reflexo. Quem faz isso está apostando no escuro. Para mim, a Capoeira é como o jogo de xadrez. Tenho que dar xeque mate.
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F.A.: O senhor acredita que planejamento é determinante no jogo?
M.M.: Sim. Planejar o jogo não é repetir seqüências, é simular intenções para criar situações. Se você dá o pé e entra no rosto, criou uma situação. O adversário que reage só com reflexo perde. Mas se ele pensa nas possibilidades, cria um antídoto.
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F.A.: Há profissionalismo na Capoeira Angola?
M.M.: Tive um ótimo mestre. Ele não vivia disso, mas era responsável. Profissionalismo tem a ver com responsabilidade. Vejo o mestre Camisa como um grande exemplo de profissional, apesar de ele ser de outra linha. Hoje, tem muita gente dando aula, mas o profissionalismo está longe do ideal. Algumas pessoas acham que são maiores do que a Capoeira. Nada é maior do que a Capoeira... Se o seu trabalho é ensinar Capoeira, você tem que estar com seus alunos. Se a sua história é fazer com que a Capoeira se alastre, principalmente de uma forma responsável, tem que estar presente.
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F.A.: A imagem do capoeirista melhorou muito?
M.M.: Melhorou na mídia. Não tem aquele preconceito dos anos 70. A imagem melhorou. A qualidade, não.
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F.A.: O que atraía as pessoas para a Capoeira, nos anos 70? O que as atrai hoje?
M.M.: O que me atraiu foi o ritmo. Foi eu sentir no coração um arrepio. O que atraía as pessoas, naquela época, talvez tenha sido a curiosidade. Hoje, é o modismo. As pessoas vêm para fazer amizades. As pessoas hoje estão muito mais solitárias do que há 30 anos.
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F.A.: O senhor se arriscaria a fazer uma projeção sobre a Capoeira nos próximos 30 anos?
M.M.: A Capoeira vai mudar, mas ela precisa mudar muito pouco. Nos últimos 30 anos, ela já mudou. Mas no meu entendimento, não precisava ter mudado. Precisamos pelo menos tentar preservar. Como tem lá a cultura oriental, de milhares de anos...