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Entrevista com mestre Moraes

 

Pedro Moraes Trindade nasceu em Salvador, em 1950. Iniciou-se na capoeira aos 8 anos, com mestre João Grande, na Academia de Mestre Pastinha.

Empenhado na luta pelo resgate e preservação da Capoeira Angola, Mestre Moraes afirma que para o GCAP a capoeira é mais importante na medida em que agrupa seus praticantes num projeto de conscientização social, político e cultural.

Confira abaixo uma entrevista exclusiva que a Revista Praticando Capoeira, Coleção Grandes Mestres/Grandes Grupos, realizou com Mestre Moraes.

 

P. Capoeira: Qual era a situação da Capoeira Angola quando você retornou para Salvador, em 1982?

M. Moraes: Naquele momento a Capoeira Angola estava agonizando em função da morte de Pastinha e, também, devido à pressão da Capoeira Regional que ainda era hegemônica. Hegemonia esta, alimentada pelo discurso elaborado dos seus praticantes aos quais sempre interessou mostrar a Capoeira Angola como arte de analfabetos. Sem significado palpável dentro do contexto sociopolítico.

 

P. Capoeira: Fale sobre o trabalho de resgate e preservação da Capoeira Angola que iniciou na década de 80, em Salvador.

M. Moraes: Com o meu retorno do Rio de janeiro para Salvador resolvi reunir, através das oficinas de Capoeira Angola promovidas pelo GCAP, os mestres desta arte os quais já estavam sendo apresentados como peças de museu. Convidei-os a fazer comigo um movimento em prol do retorno da Capoeira Angola, o que eu não conseguiria fazê-lo sem a participação direta deles.

 

P. Capoeira: Em que situação encontrava-se Mestre João Grande e outros grandes nomes da Capoeira Angola no início da década de 80?

M. Moraes: Como foi dito anteriormente os mestres de Capoeira Angola estavam relegados a um plano inferior, em função da hegemonia da Capoeira Regional. Alguns já estavam até sendo influenciados pelo novo estilo (veja mestres que ensinam angola e fazem batizados e fornecem cordéis). Quanto ao Mestre João Grande, apesar da sua excelsitude no ser mestre de Capoeira Angola, um dos mais perfeitos representantes desta arte tão mágica, ao lado do Mestre João Pequeno, estava naquele momento afastado da Capoeira Angola, em função do fato de estar trabalhando como frentista em um posto de gasolina. À noite ele se apresentava numa cada se show folclórico mas não apresentava capoeira por não ter a condição de agradar turistas com saltos acrobáticos ou coisas de igual valor. O Mestre João grande foi um dos mestres que o GCAP resolveu trazer de volta para a prática. Até porque ele é o meu estimado e competente mestre.

 

P. Capoeira: Hoje em dia, muitos grupos de Capoeira Angola têm propostas e posicionamentos bastante divergentes. Na sua opinião, porque está acontecendo isso?

M. Moraes: É muito normal quem em qualquer sociedade aconteçam as divergências. Desde quando esta sociedade esteja buscando os caminhos para a estabilização de um movimento qualquer. Ruim é quando acontece a acomodação, dando provas de inércia. Vale frisar que a preocupação com os diferentes posicionamentos normalmente vem daqueles a quem interessa o retorno da Capoeira Angola ao comodismo. Inclusive, no momento em que a capoeira estava quase extinguindo-se ou sendo extinta, ninguém criticou a indolência dos capoeiristas. Outro motivo estimulador das divergências é o fato de muitos capoeiristas saberem que a Capoeira Angola, hoje gera receita. Daí o fato de muitos capoeiristas que na década de 80 não eram conhecidos, não tinham escola de capoeira e nem participaram do movimento de luta pelo retorno da Capoeira Angola, estão agora buscando unicamente tirar proveito do que foi conseguido pelos outros. Pode-se observar que as divergências acontecem entre eles mesmos, em função da disputa pelo mercado.

 

P. Capoeira: Quais as consequências de praticar Capoeira Angola sem responsabilidade, comprometimento e respeito às tradições e fundamentos?

M. Moraes: A consequência fundamental, entre outras, é o desaparecimento dos elementos que realmente caracterizam a Capoeira Angola, tornando este estilo mais uma manifestação efêmera.

 

P. Capoeira: Qual a sua opinião sobre os grupos que praticam Capoeira Angola e Regional?

M. Moraes: Eu não teria nada contra estes grupos, caso eles tivessem a condição de agradar os dois deuses da capoeira: Mestre Pastinha e Mestre bimba, ao mesmo tempo. O que não acredito possível, devido à complexidade de exigências que envolve o agradar a dois deuses. Pior são os “mestres” de Capoeira Regional que, um dia qualquer, ao acordar pela manhã, resolvem passar a ensinar Capoeira Angola sem nunca tê-la aprendido. Alguns até ousar dar cursos de Capoeira Angola no exterior, acreditando estar escondido aos olhos da censura brasileira. Mas não adianta, porque, mesmo lá fora, os capoeiristas já não estão mais se deixando enganar como antes. Esses mestres acreditam que para tornar-se um verdadeiro angoleiro basta ter participado de cursos de final de semana ou ter assistido fitas de vídeo do Mestre João Grande, Mestre João Pequeno, Mestre Moraes e outros. A nova estratégia para justificar a farsa é fazer afirmações do tipo: “eu jogo capoeira”.

 

P. Capoeira: Qual a relação da Capoeira Angola com o candomblé?

M. Moraes: Um filósofo africano, M. Mbite, é enfático ao afirmar a impossibilidade da desconexão do homem, principalmente o africano, da sua religiosidade: ora, vendo-se o candomblé como uma das vertentes religiosas africana, está aí sua relação. Eu só não concordo com a ideia de que alguém, para aprender Capoeira Angola tenha, obrigatoriamente, que estar envolvido com o candomblé ou qualquer outra religião. Basta que, dentro de si mesmo, consiga sentir os elementos místicos da capoeira como religião.

 

P. Capoeira: Qual a sua opinião sobre a hipótese de alguns pesquisadores de que a capoeira é originária da África?

M. Moraes: Eu concordo com a hipótese. Inclusive vejo com certo cuidado a afirmação de uma capoeira genuinamente brasileira, na tentativa de desvinculá-la da cultura africana. Até acredito no Brasil como espaço onde a capoeira teve que se transformar, e vem se transformando, para sobreviver às perseguições, cerceamentos, etc. Jamais acreditarei como o espaço onde ela surgiu. Alguns querem nos fazer acreditar que a escravidão foi o estímulo para que o africano criasse cultura. Não sabem eles que esta cultura chegou no porão dos navios negreiros. No corpo e na mente dos homens e mulheres africanos.

 

P. Capoeira: Qual a situação política que a Capoeira Angola está vivendo hoje?

M. Moraes: Existe um fato importante a ser observado na Capoeira Angola hoje que é a sua expansão demográfica e geográfica. Urge que a haja consciência por parte dos capoeiristas, neste processo de expansão, a fim de que a Capoeira Angola não venha a ser limitada a, unicamente, mais uma forma de jogar capoeira. Quando eu falo em controle ou consciência não penso numa instituição que passe a determinar quem pode ou quem não pode praticar Capoeira Angola, mas um grupo de mestres verdadeiramente reconhecidos os quais teriam o objetivo precípuo de dar continuidade aos desejos do Mestre Pastinha, no que diz respeito aos princípios da Capoeira Angola. Em momento nenhum alguém tentou controlar a capoeira sem o objetivo de limitá-la àquilo que lhe(s) interessava. Por exemplo, evitar a divulgação dos elementos inerentes a a ela, que possam orientar o capoeirista para a consciência do significado de cidadania.

 

P. Capoeira: Sabemos que a Capoeira Angola tem uma força mistica e uma energia muito forte. Você poderia citar algum episódio em roda em que essa “força” manifestou de maneira muito intensa?

M. Moraes: É fato a existência de elementos inexplicáveis na Capoeira Angola, os quais fazem parte do seu todo. Como exemplo posso citar uma vez em que, numa roda de capoeira do GCAP, os arames dos berimbaus quebravam, os três, quase simultaneamente. No dia anterior eu tinha comentado com os meus alunos sobre o fato de que o aço do berimbau absorve toda energia negativa que, por ventura, esteja no ambiente da roda. Realmente, naquele dia, nós tínhamos pessoas (visitantes) participando da roda que não estavam em harmonia com o ambiente.

 

P. Capoeira: Fale um pouco sobre a Capoeira Angola e a questão da ancestralidade.

M. Moraes: A tradição representa a conexão entre o nosso comportamento hoje e os costumes dos nossos ancestrais. Ao preservarmos as tradições da capoeira angola estamos, assim, mantendo vivo o link entre nós e os nossos antepassados. Daí a necessidade de se respeitar os velhos mestres, ou da obrigação de se manter ou buscar uma referência no princípio da ancestralidade, a fim de que a corrente energética seja mantida. Quer queiram quer não, é impossível negar que eu sou uma das pontas da corrente na ligação entre Mestre João Grande, Mestre Pastinha, Mestre Benedito e os seguintes. A noção de ancestralidade é, no mínimo, bíblica. Já foi dito que: “Ninguém irá ao pai, senão por mim”.

 

P. Capoeira: Segundo alguns historiadores, antigamente não havia tanta preocupação com os rituais e tradições nas rodas de Capoeira Angola. Por que os angoleiros, hoje em dia, estão dando tanta importância a essa questão?

M. Moraes: Antigamente os angoleiros não tinham a necessidade de se preocupar com os rituais e tradições porque estes elementos faziam parte do seu dia a dia. Além disso aos angoleiros daquela época não foi dada a condição de verbalizar as subjetividades da capoeira, o que não impedia o sentimento de responsabilidade para com esta arte. Hoje em dia os tempos são outros. A capoeira não é mais uma manifestação praticada “entre iguais” como dizia o saudoso mestre Pastinha. A preocupação com as tradições, hoje é função de evitar que os elementos intrínsecos da Capoeira Angola venham a desaparecer. Vejo como positiva essa inquietação.

 

P. Capoeira: Quais as transformações internas que frequentemente acontecem nas pessoas que começam a praticar Capoeira Angola?

M. Moraes: O praticante de Capoeira Angola não observará transformações internas imediatamente após um envolvimento inicial. É possível que com o tempo, não cronológico, seja observada uma interação entre o praticante e as subjetividades inerentes à Capoeira Angola, o que transformará o neófito, aos poucos, em defensor da causa. Periga, às vezes, o iniciante não saber administrar o envolvimento inicial e passa a acreditar que já sabe tudo de Capoeira Angola. Puro engano. Ainda tem muita água pra rolar.

 

P. Capoeira: Hoje, muitos praticantes de Capoeira Regional estão abandonando esse estilo e iniciando-se na Capoeira Angola. M. Moraes: Na sua opinião, por que está acontecendo isso?

São poucos os que estão abandonando o estilo regional em função da Capoeira Angola. A maioria tem preferido “ensinar” os dois estilos, mesmo sem tê-los aprendido a contento. Outros foram, naquela época, induzidos a escolher a Capoeira Regional como um estilo civilizado, social. Em detrimento da Capoeira Angola que sempre se portou como um estilo socialista. As transformações sociais têm obrigado àqueles que acreditavam que a Capoeira Angola vivia na lama, a voltarem às raízes desta manifestação para entenderem o porque praticam capoeira. Sem deixar de citar, também, aqueles que permanecem infiéis aos princípios do Mestre Bimba pelos quais tenho muito respeito, pelo fato de estarem fazendo com a Capoeira Regional o que tenho feito com a Capoeira Angola. Só não concordo com cooptações.

 

P. Capoeira: Fale um pouco sobre a XII Oficina de Capoeira Angola do GCAP.

M. Moraes: A XII Oficina de Capoeira Angola objetivou estimular os praticantes e admiradores da Capoeira Angola a iniciarem uma reflexão no que diz respeito às subjetividades desta manifestação. Além da intenção de reunir os membros do GCAP – do Brasil e do exterior – para uma avaliação de nosso trabalho.

 

P. Capoeira: quais as perspectivas para a Capoeira Angola neste próximo milênio?

M. Moraes: Precisamos cuidar para que essa “febre” Capoeira Angola não resulte em criações de outros “estilos” dentro do próprio estilo o que, dificultará, com certeza, a caminhada em direção ao entendimento total da Capoeira Angola.

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